Mistérios e Proezas do Cordel
Sá Maria, minha avó - Depoimento do neto
Josué Gonçalves de Araujo, escritor cordelista da Editora Luzeiro:
Sá Maria, assim era conhecida a minha avó Maria Francisca da Silva. Teve papel relevante na minha vida literária e provavelmente no meu destino. Foi ela quem, numa noite de lua luminosa, quando ainda não havia energia na cidadela, contou a primeira história de Cordel para nós, que embevecidos, sentados no chão do terreiro, ouvia em silêncio. Acredito que só eu tenha gravado profundamente na alma, as emoções daquele instante mágico. Garoto de apenas 6 anos de idade, não conseguiu dormir naquela noite sonhando com todo aquele cenário de gigantes e heróis valentes e um linguajar estranho – em versos. Hoje sou um escritor cordelista da tradicional Editora Luzeiro Ltda., de onde saiu a história que ela nos contou: "A história do valente João Acaba-mundo e a serpente negra" de Minelvino Francisco da Silva que, coincidentemente residia em Itabuna-BA, região onde morou a minha Avó. Todas as outras histórias contadas por ela estão lá nos livretos, alguns com páginas acidificadas ou manchadas pela ação do tempo, nas prateleiras da editora.
Vale lembrar que a minha Avó era analfabeta, mas de tanto ouvir desde criança, as histórias dos livretos de cordel, ela tinha decorado tudo na memória. Influenciada por ela ou provocado pela magia do cordel que ela recitava em versos, passei a amar os livros e me tornei um escritor de cordel. Ao ouvir a primeira história do cordel encontrei um portal par um mundo virtual, onde tudo era possível nquele cenário literário; onde poderia, ter ou ser, tudo o que eu não tinha no mundo real, da seca, da miséria, dos espinhos das lavouras em tempos de colheitas, dos sacrilégios da vida de boia-fria nas terras do Pontal do Paranapanema. Assim era a força desse gênero da literatura em versos e rimas que alfabetizou durante muito tempo o povo nordestino que ansiava pelo saber.
Dizem os cientistas da vida que:"...a natureza sempre dá um jeitinho", bem assim foi o nordestino diante das dificuldades da sobrevivência: sempre encontrou um beco, um atalho, uma trilha, um jeitinho para sobreviver, pois, de onde deveria vir o suprimento das necessidades básicas, não vinham nunca. Estou falando de escola e recursos sociais e culturais. O governo, os políticos e os coronéis negligenciavam toda espécie de projeto que objetivava amenizar os flagelos oriundos da seca no nordeste, por simples conveniência - politicalha brasileira que ainda esta ativa.
O Cordel ou os livretos conhecido por Sá Maria com o nome de: “Romanso” (romance), cumpriu o seu papel. Uma literatura em linguagem fácil, metrificada, rimada, versificada de fácil assimilação pelo povo nordestino do sertão carente dos recursos do conhecimento cultural das grandes cidades. O verdadeiro cordel tem a alma da oralidade entranhada em sua essência literária.Não se consegue ler para si próprio, em voz alta....Eu vou contar uma história, de um pavão misterioso...de José Camelo de Melo Resende, ...Para quem pensar assim, como exemplo eu vou contar, a história dum preguiçoso...de Minelvino Francisco Silva. A oralidade é uma das características desse gênero literário. Quem conta uma história, conta para alguém ouvir, ou segundo Minelvino, ... Para quem pensar assim, é sempre, de preferência para o ouvinte.
Os escritores cordelistas da geração atual, lutam pelo reconhecimento da supremacia desse gênero literário, que sempre ficou a margem da elite da literatura dita erudita, oficial, em razão do preconceito?
Sou eternamente grato a minha avó Sá Maria. Inspirado nela eu escrevi o meu primeiro romance em prosa com 187 páginas: “O Mistério da Bruxa de Areia Dourada” onde a personagem "Nhá Maria" é a grande guerreira e se torna mais forte após a sua morte. Um dia vou publicá-lo em cordel.
Ainda sobre essa guerreira:
Sá Maria ganhou do seu padrinho, uma bezerra que ainda estava na barriga da mãe. Com essa bezerra ela fez uma boiada. Os bois foram criados soltos nas caatingas do sertão sem cercas de arame farpado e perambulavam pelo terreiro da casa como se fossem cachorros ou porcos domésticos. Quando os filhos de Sá Maria se largaram no mundo - um deles seria o meu pai - engrossando as filas dos migrantes da seca, ela vendeu a boiada e partiu para o oeste do estado de São Paulo a busca dos filhos. Comprou uma casa com um grande quintal cercado de balaustres de madeira, bem na cidadezinha de Mirante do Paranapanema. Criou galinhas, cultivou uma horta e era a melhor saboeira da cidade. Fazia o melhor sabão de sebo e soda. Vendia as suas verduras, os frangos e o sabão para os moradores e para as mulheres do bordel, na periferia da cidade. Sá Maria, minha avó sempre foi um exemplo de nordestina guerreira. Não lia com os olhos, não escrevia com as mãos, mas usou os ouvidos para assimilar aquela forma de literatura - o cordel - única fonte de cultura e conhecimento, acessível. Dessa forma se tornou a minha primeira professora de literatura popular (oral), quando eu ainda não sabia ler e nem escrever. O cordel se utilizou da minha avó para me laçar com o seu nó indesatável.
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